Seja bem-vindo a esse espaço no qual se pretende multiplicar conhecimentos pertinentes ao continente africano e de sua diáspora no Novo Mundo. É reconhecida a necessidade das trocas de saberes e a socialização do conhecimento na área da História, com vistas ao desenvolvimento das atividades de ensino e pesquisa na busca da inclusão de temas que contribuam para a compreensão da multiplicidade das experiências humanas e a criticar estereótipos organicamente naturalizados.



sábado, 15 de maio de 2010

Resenha: Anti-racismo e seus paradoxos, de Célia Azevedo

O tema cotas está mais atual do que nunca, seis anos após a publicação do livro da Professora Célia Azevedo (Unicamp). O tema está sendo debatido na UFRJ, uma das poucas universidades brasileiras que não adota esse sistema, e a Lei de Cotas aguarda votação no Senado, após aprovação na Câmara.

Introdução

AZEVEDO, Celia. Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004.

O objeto dessa resenha é o livro Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. Célia Azevedo discute o tema racismo e anti-racismo, enfocando, principalmente, a questão das políticas de ação afirmativa, sobretudo as cotas raciais.

A razão da escolha do livro foi o assunto abordado, bastante polêmico e cada vez mais discutido. O livro foi publicado em 2004. A autora, Célia Maria Marinho de Azevedo, é brasileira e fez doutorado em História na Columbia University nos Estados Unidos, é também professora da Unicamp. É autora dos livros: Onda negra, medo branco, e Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada.

A abordagem do livro é específica, apesar de tratar-se de sete artigos publicados ou divulgados em diferentes ocasiões. Todos eles giram em torno do tema racismo e/ou anti-racismo. A autora deixa claro seu posicionamento contra as cotas raciais nas universidades brasileiras e contra a importação do modelo de cotas americano.

Conteúdo

No capítulo 1 “Cota racial e Estado: abolição do racismo ou direitos de raça?” a autora afirma o seu posicionamento contra as cotas raciais e a favor da igualdade de oportunidades de todos sem distinção. A autora critica o embasamento teórico das cotas raciais, que tenta utilizar a discriminação racial de forma positiva (discurso anti-racista diferencialista).

A autora vê como contra-senso combater o racismo e ao mesmo tempo assumir a existência de uma raça negra. A autora aborda a questão da dificuldade em se definir quem é negro num país miscigenado como o Brasil. E compara os teóricos pró-cotas a cientistas racistas do século XIX. Critica ainda o modelo de cota racial dos Estados Unidos. Para ela, o sistema de cotas americano beneficiou principalmente a classe média negra, que já existia e não contribuiu para reduzir a criminalidade e nem a desigualdade social no país, ao mesmo tempo em que não alterou a supremacia branca, ao contrário, até reforçou-a, pois esvaziou as políticas de cunho igualitário.

Azevedo vê como de cunho político a opção pelas cotas raciais, resultante de governos oportunistas e necessitados de apoio popular. A autora aponta como simplista a adoção das cotas raciais em detrimento de outras políticas de redução da desigualdade social, como a Reforma agrária, o Bolsa escola e o Projeto de renda básica universal. Para a redução do racismo a autora defende atividades educacionais como curso para negros e carentes e concessão de bolsas de estudo.

A autora embasa o seu posicionamento contra as cotas na idéia de que não se pode defender as cotas sem acentuar as diferenças e sem ressaltar a existência da idéia de raça.

No capítulo 2 “Cota racial e universidade pública brasileira: uma reflexão à luz da experiência dos Estados Unidos”, a autora aborda o debate sobre as cotas raciais no Brasil, que se inspirou no modelo americano. Para isso, ela explica o surgimento da política de cotas, que foi resultado do contexto histórico pós-movimento dos Direitos civis e foi utilizado politicamente por quem acreditava na inferioridade dos negros e ao mesmo tempo tentava manter essa parcela da população sob controle.

A autora compara a situação do racismo existente no Brasil com o existente no norte dos Estados Unidos, nos anos 60, encoberto, sem leis explícitas de segregação. Para a autora a política de cotas raciais surgiu da derrocada pela luta pela igualdade de direitos, com o esvaziamento do movimento dos Direitos civis com a morte de Martin Luther King, e a ascensão da questão da igualdade de oportunidades ou “de resultados”. A partir daí surgiram dois tipos de políticas compensatórias, segundo a autora: políticas de ação afirmativa, que buscavam a inclusão do negro na sociedade como um todo e políticas separatistas, voltadas a igualdade de oportunidades dentro da comunidade negra.

A autora enumera as críticas que vem recebendo a política de cotas nos Estados Unidos: a primeira delas é a inserção do negro na universidade sem a preocupação com a qualidade da educação que receberam e se conseguirão concluir ou não o curso superior. A segunda queixa refere-se à situação econômica dos beneficiados pelas cotas, a maioria dos postulantes às vagas nas universidades mais concorridas são de classe média, os negros pobres concentram-se em grandes universidades públicas e pequenas instituições de ensino superior comunitárias.

A outra crítica refere-se à adoção de critérios raciais na seleção dos ingressantes nas instituições de ensino superior: os escolhidos são os melhores dentro da categoria racial, ou seja, os negros concorrem com negros, o que faz com que eles sejam aprovados com médias menores das obtidas pelos brancos. Para a autora, os beneficiados pelas cotas nos Estados Unidos, negros e hispânicos, sofrem preconceitos por terem sido admitidos por causa de sua raça e não pelo seu conhecimento.

A autora ressalta as diferenças existentes entre o Brasil e os Estados Unidos, que inviabilizariam a adoção do modelo americano no Brasil: o sistema de ingresso nas universidades - no Brasil, há um sistema universalista pautado no mérito, enquanto nos Estados Unidos cada instituição adota o seu critério - ; a dificuldade de definir quem é negro no Brasil - dificuldade esta que não existe nos EUA pelas políticas segregacionistas que obrigaram os mestiços a classificarem-se como negros - ; os mestiços - hoje nos EUA, as pessoas não se contentam em definirem-se como brancos ou negros, há uma parcela marcante da população que se define como mestiça-. A autora ressalta também que a população americana já era maciçamente alfabetizada na época de implantação das cotas e já havia um sistema universal de ensino básico, o que, segundo a autora, não acontece no Brasil.

O que a autora propõe é que os problemas específicos do Brasil sejam analisados, antes da importação do modelo de cotas americano. Ela é contra políticas que diferenciam as pessoas pela sua raça. A autora também propõe investimento e melhoria do ensino fundamental sugere como alternativa às cotas a concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e programação cultural também nas escolas públicas.

No capítulo 3, “Entre o universalismo e o diferencialismo: as políticas anti-racistas e seus paradoxos”, a autora afirma existirem dois tipos de políticas anti-racistas: anti-racismo universalista, que tem como objetivo coibir o racismo e a redução das desigualdades. Não existe a diferenciação em termos de raça nessa política (igualdade de direitos); anti-racismo diferencialista, reconhece as diferenças entre os seres, sejam étnicas, culturais, ou sociais e procuram, a partir dessas diferenças, inseri-los em políticas de ação afirmativa (igualdade de oportunidade ou de resultados).

A autora considera racistas os partidários do anti-racismo diferencialista, já que estes se apóiam no conceito de raça para defender a sua teoria. A autora enfatiza a crise enfrentada pelas políticas de ação afirmativa nos países onde elas já são aplicadas há algum tempo.

As duas políticas, segundo a autora, representam as idéias de humanidade (a primeira) e identidade de raça (a segunda). Na primeira, o racismo deixaria de existir porque as pessoas não se veriam mais como pertencentes a uma ou outra raça, mas somente como parte da humanidade. Na segunda, o racismo não mais existiria por causa das políticas de ação afirmativa. A autora deixa evidente a sua posição contra as cotas, por acreditar que elas acentuam o racismo, e que a adoção dessas políticas acentuará os conflitos e, posteriormente, diminuir a discriminação ficaria mais difícil.

A autora finaliza esse capítulo apresentando outra corrente de pensamento, proposta por Wieviorka, que alia as duas políticas anti-racistas, ou seja, alia a criação de oportunidades para os historicamente discriminados, sem perder o sentido universal de humanidade. A autora, porém, não apresenta exemplos de como isso poderia ser feito.

O capítulo 4, “A nova história intelectual de Dominick LaCapra e a noção de raça”, tem por objetivo apresentar as idéias de LaCapra e usá-las como base para avaliar as relações raciais no Brasil. A autora vê criticamente a tendência atual de pesquisas que enaltecem a resistência negra durante a escravidão e esquecem o número considerável de negros que conviveram com a aristocracia branca.

A autora apresenta o pensamento de LaCapra, segundo o qual a questão racial deve ser evitar o cunho racialista, ao mesmo tempo em que aceita a idéia de pertencimento étnico. Ela, então, apresenta algumas alternativas que contemplam essa teoria: Como a de Michel Wieviorka que propõe que o conceito de etnicidade deve unir o princípio universalista e o princípio diferencialista e a de David A. Hollinger que propõe a perspectiva pós-étnica, em que o principal é a escolha do indivíduo de sua etnicidade, ao invés da imposição da ascendência familiar. Para a autora, uma pessoa é constituída das influências que tem durante a vida e não é limitada pelo pertencimento a uma raça.

No capítulo 5, “13 de maio e anti-racismo”, a autora discute a mudança de foco das comemorações do movimento negro. O dia 13 de maio deixou de ser celebrado e tudo o que esta data representava, a abolição da escravatura pela princesa bondosa e um final feliz para os ex-escravos. Em seu lugar passou a ser valorizado Zumbi dos Palmares, um herói negro, até então pouco conhecido e que surge através do movimento negro.

A autora é a favor da comemoração do dia 13 de maio, por ser este dia o resultado de esforços de escravos e abolicionistas, que pressionaram o poder real para adquirirem o seu direito de liberdade. Segundo a autora, as primeiras comemorações do dia 13 de maio partiram dos ex-escravos, que celebraram esse dia, como resultado de uma luta travada durante tanto tempo. A autora é a favor das comemorações dos dois feriados pelas suas diferentes simbologias.

No capítulo 6, “Quem precisa de São Nabuco?”, o tema é o intelectual Joaquim Nabuco, senhor e proprietário de escravos e político, que a autora compara a um santo pela imagem que fazem dele. Azevedo analisa alguns escritos do abolicionista que revelam um pensamento racista, de subserviência do negro como um animal ao homem branco. Porém, há uma uniformidade de discurso sobre o autor que atribui a ele uma imagem de bondoso perante os negros, até hoje se estuda escravidão no Brasil de acordo com os períodos propostos por ele. Na verdade, Nabuco era a favor de que fosse feita a abolição, mas sem prejuízo das atividades agrícolas.

A autora apresenta várias citações de Nabuco para provar a sua tese de que ele era racista e que seus escritos revelam que ele defendia a superioridade dos brancos sobre os negros e convida os leitores a revisitarem Nabuco, sem medo de rever suas idéias abolicionistas liberais que foram reflexo de uma época e de uma corrente de pensamento.

No capítulo 7, “Para além das ‘relações raciais’: por uma história do racismo”, a autora afirma que entre os partidários do anti-racismo há duas correntes: os que vêem a raça como um conceito inventado e sem fundamento, e outra corrente que acreditam que alguns indivíduos são diretamente relacionados racialmente. A autora ressalta a idéia de que as relações que envolvem os negros são sempre chamadas de relações raciais, enquanto que as relações entre os brancos não têm esse cunho.

A autora mostra como surgiu a escravidão dos negros e a partir de que momento estes passaram a ser sinônimo de escravos. Azevedo, de acordo com Delacampagne, afirma que a idéia de raça relacionada à cor da pele é de fins do século XVII. A escravidão, de acordo com Eric Williams em citação descrita pela autora, surgiu antes do racismo. Esse surgiu para justificar a escravidão. Para a autora, o caminho para a superação do racismo só se dará através da negação das raças.

Considerações finais

A leitura do livro é válida por discutir um tema tão polêmico e atual como as cotas. Apesar de ser composto por artigos publicados ou divulgados em diferentes momentos, o livro não perde a sua unicidade, porém, é em alguns momentos repetitivo. Quatro dos sete capítulos abordam a questão das ações afirmativas, principalmente as cotas para a entrada dos negros na universidade.

Os capítulos que abordam as cotas utilizam sempre a comparação com as políticas existentes nos Estados Unidos e a visão da autora é sempre negativa em relação aos resultados dessas políticas. A autora é partidária da adoção de medidas universalistas como forma de combate da desigualdade. Petrônio Domingues - Doutor em História pela USP e professor da Universidade Federal de Sergipe - em uma resenha publicada na revista Varia História (v. 23, n. 37, jan./jun. 2007) confronta a posição da autora utilizando-se, para isso, da média de anos de estudo de negros e brancos:

“A implementação de políticas públicas universalistas, quais sejam, programas governamentais que atacariam as causas sociais da desigualdade não sinalizam para a erradicação do racismo no país. Conforme apurado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no ano de 2001, todas as políticas públicas universalistas empreendidas pelo governo, desde 1929, não conseguiram eliminar a taxa de desigualdade racial no progresso educacional do brasileiro. Os brancos estudam em média 6,6 anos e os negros 4,4 anos. Esta distância, de 2,2 anos, é praticamente a mesma do início do século XX. A conclusão é reveladora: apesar de ter acontecido uma elevação do nível de escolarização do brasileiro, de 1929 para os dias atuais, a diferença de anos de estudos dos negros frente aos brancos permanece inalterada.” (p. 243)

Para a autora, as políticas de ação afirmativa nos EUA só beneficiaram os negros de classe média e, baseada na experiência americana, ela afirma o seu posicionamento contra as cotas no Brasil. Além disso, a autora acredita na teoria de que a adoção de cotas no Brasil aumentaria o racismo, como se este já não existisse em grau acentuado no Brasil.

Na opinião de Célia Azevedo, não há como apoiar políticas de ações afirmativas baseadas em critérios raciais sem semear o racismo, ou seja, não há como, ao mesmo tempo, defender que as raças não existem e, mesmo assim, utilizar critérios raciais para promover a igualdade. Sobre essa posição da autora, Petrônio Domingues diz:

“é sabido que ‘raça’ é uma construção social, com pouca ou nenhuma base biológica, mas não adianta o Estado negligenciá-la, porque as pessoas classificam e tratam o ‘outro’ de acordo com as idéias socialmente aceitas. Ademais, o Estado brasileiro nunca teve a tradição de desenvolver políticas de identidade racial junto à população, mas nem por isso o racismo deu sinais de subtração ou perecimento”. (p. 244)

O livro vale a pena ser lido, pois a autora aborda o tema de forma direta, fazendo com que a leitura seja de fácil entendimento, porém, não há como negar que a situação do negro no Brasil é de extrema desigualdade perante os brancos e que, provavelmente, as políticas universalistas não sejam suficientes para que os negros compitam em igualdade com os brancos.

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